Romancista como vocação, de Haruki Murakami

Coisas inexplicáveis podem acontecer – e acontecem – envolvendo livros, leitores e autores. Vejam, por exemplo, meu caso com o escritor japonês Haruki Murakami: não sei por quê, mas tenho por ele uma simpatia que não vem da leitura de suas obras. Simplesmente gosto do Murakami, e não sei explicar o motivo.

“Conheço” Murakami desde quando recebi, em 2007, um exemplar de “Norwegian Wood”, um dos livros de maior sucesso do escritor, na bonita edição da Objetiva (hoje seus livros são lançados pelo selo Alfaguara), mas somente em 2016 li uma de suas obras: o romance “Minha querida Sputnik”, do qual não gostei muito. Como a primeira impressão não foi das melhores, decidi esperar um pouco antes de tentar ler outra de suas obras. O que aconteceu no ano recém-acabado, quando li “Romancista como vocação” (tradução do japonês de Eunice Suenaga), livro em que Murakami fala sobre o seu ofício.

O autor japonês conta como foi o início de sua carreira, fala sobre prêmios literários, sobre como surgem os personagens dos seus livros e como eles tomam as rédeas de suas narrativas, sobre como entrou no mercado editorial dos Estados Unidos, sobre a educação no Japão e outras coisas mais.

Um dos aspectos mais curiosos de “Romancista como vocação” é o tom que Murakami muitas vezes usa: é como se ele estivesse pedindo desculpas por estar compartilhando as suas experiências. E ele de fato pede desculpas em diversos momentos por expressar algumas de suas opiniões.

Mas a maior peculiaridade de todo o livro talvez esteja logo no início, quando o autor afirma que tornou-se escritor completamente por acaso. Murakami conta que estava assistindo a um jogo de beisebol num estádio e, após uma bola rebatida, um pensamento veio à sua mente: “É, talvez eu também possa escrever romances”. E continua:

“Até hoje me lembro bem do que senti. Foi como se algo tivesse caído do céu lentamente e eu o tivesse recebido com as duas mãos. Não sei bem por que ele veio justo na minha direção, por acaso. Não entendi na hora e não entendo até hoje. De qualquer forma, isso aconteceu”.

Depois do jogo, Murakami foi a uma papelaria, comprou papel e caneta-tinteiro, e começou a escrever seu primeiro romance: “Ouça a canção do vento”, que concluiu “em cerca de seis meses”. A partir daí, o autor não parou mais.

Nessa época, Murakami tinha um bar. Com o sucesso dos primeiros livros – “Ouça a canção do vento” venceu o prêmio de jovens talentos de uma revista literária chamada “Gunzô”, e tanto esse romance quanto o segundo, “Pinball, 1973”, foram finalistas do prêmio Akutagawa -, Murakami se desfez do estabelecimento para se dedicar exclusivamente à literatura. Felizmente, a aposta deu certo, e ele se tornou o autor japonês mais bem-sucedido do seu tempo.

A propósito: em diversos momentos o autor parece atribuir seu sucesso mais à sorte do que à sua obstinação. Mas, na verdade, talvez seja apenas uma forma de o autor dizer que não basta “apenas” ter talento e se esforçar, afinal, quantos grandes autores não morreram sem conhecer o sucesso? É preciso, também, um pouco de sorte, ser a pessoa certa no momento certo – e de conhecer as pessoas certas. Isso fica evidente no capítulo em que ele relata como entrou no mercado editorial dos Estados Unidos.

Voltando ao capítulo em que ele fala sobre prêmios literários, pode-se notar um certo ressentimento de Murakami com os críticos japoneses. Ele enfatiza que não há nenhum tipo de mágoa, mas capítulos à frente torna à carga – ainda que de maneira mais sutil – ao comentar que sua obra era/é de certa forma mais respeitada por críticos de outros países do que pelos críticos do próprio país. Isso talvez explique verdadeiramente (ele dá outra explicação) a razão de ter se afastado do Japão durante algum tempo, e o fato de não fazer aparições públicas no Japão, mas fazer aparições em outros países (ele também comenta isso).

Antes que este texto termine, é importante mencionar, também, a ênfase que o autor dá ao equilíbrio entre corpo e mente. Quem conhece Murakami sabe que ele é um corredor, e já até publicou um livro sobre o assunto: “Do que falo quando falo de corrida”, cujo título dá a oportunidade de mencionar Raymond Carver, um dos autores que mais o influenciaram (e um dos mais citados durante “Romancista como vocação”). Tanto que o título “Do que falo quando falo de corrida” é uma referência a um conto de Carver (“Do que estamos falando quando falamos de amor”, em tradução de Rubens Figueiredo).

Sobre corpo e mente, Murakami diz que “é necessário um condicionamento físico extraordinário para ficar sentado à mesa, na frente da tela do computador (…), se concentrar e criar uma história”, não sem antes deixar claro que “Naturalmente estou dando a minha opinião, com base na minha experiência. Talvez ela não seja universal. Mas qualquer opinião é pessoal e baseada na experiência (…) Eu tenho a minha. Você pode julgar se ela é abrangente ou não”.

Leitura imperdível para os fãs do autor, “Romancista como vocação” é, também, como já se poderia supor, um prato cheio para escritores iniciantes. Mas, naturalmente, estou apenas dando a minha opinião. Você pode julgar se ela é abrangente ou não…

* * *

Publiquei, em agosto, meu segundo livro: “Mais um para a sua estante”. Ele reúne crônicas sobre livros, escritores e otras cositas más. A maioria delas foi publicada anteriormente na internet (como os textos “Pão com ovo“, “Carnaval entre livros” e “Literatura ostentação“). Se você gosta de crônicas, vale a pena dar ao menos uma olhadinha virtual nele. Neste link você pode ler o sumário, a orelha e a apresentação, e tenho publicado trechos do livro no Instagram e no Facebook.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *