Você vai voltar pra mim e outros contos, Bernardo Kucinski

voceAutor do elogiado romance “K.”, publicado em 2011 pela editora Expressão Popular, Bernardo Kucinski (São Paulo, 1937) é mais conhecido por sua carreira no jornalismo. Dizer que ele foi editor-assistente de Veja e da Gazeta Mercantil, correspondente no Brasil do jornal britânico The Guardian e que trabalhou na BBC de Londres é fazer um brevíssimo resumo de sua trajetória. Além de jornalista, Kucinski foi também professor da USP, e entre 2003 e 2006 atuou como assessor especial da presidência da república.

Apesar dos elogios e das traduções que “K.” ganhou no exterior, não é ele o assunto deste texto, mas sim o volume de contos editado pela Cosac Naify este ano, quando também reeditou o mencionado romance.

Em “Você vai voltar pra mim e outros contos”, Bernardo Kucinski reuniu contos que têm o regime militar brasileiro como pano de fundo de quase todas as histórias. Apenas dois deles, “A história de uma gagueira” e “A sandinista” têm paisagens diferentes. O primeiro, a Revolução dos Cravos, em Portugal; o segundo, a Revolução Sandinista, na Nicarágua.

Escritos entre junho de 2010 e junho de 2013, como informa o autor em nota introdutória, a maioria dos contos parece ter sido prejudicada pela falta de maturação. Nessa nota, Kucinski diz que as vinte e oito histórias reunidas no livro foram escolhidas dentro de um universo de 150 narrativas desenvolvidas nesse ínterim. Isso dá uma média de 4,16 contos por mês. Para que toda essa produção tivesse alta qualidade, Kucinski teria que ter nascido na Rússia no século XIX. O que não é o caso.

Entretanto, “Você vai voltar pra mim…” não é um livro ruim, longe disso. Apenas fica a impressão, para um leitor mais exigente e, sob vários aspectos, distante da ditadura – principalmente temporal e emocionalmente, por ter nascido já no fim ou depois dela e por não ter na família nenhum caso de prisão ou morte em decorrência do regime -, de que os contos poderiam ter sido mais lapidados, e quem sabe até mais volume – são quase todos bastante curtos.

As histórias retratam situações e dramas vividos por pessoas afetadas direta ou indiretamente pela ditadura. A maioria dos personagens foi presa, torturada e/ou morta pelos militares. Um dos contos mais dramáticos é “Sobre a natureza do homem”, que narra o sofrimento de uma mulher nos porões do regime e os traumas que ela carregou depois de libertada. O detalhe: ela sequer era uma “subversiva”. “Nas duas primeiras semanas, Maria Imaculata foi muito torturada. A equipe que a interrogava foi de uma selvageria sem limites. Depois a trancaram numa solitária. Então, mudou a equipe e pegavam mais leve, vez ou outra. Mas a expectativa de ser torturada de novo e de novo fez mais estragos nela do que a tortura física. A Imaculata se apagou, ficou abúlica.”

No conto que dá título ao livro, uma presa é levada para depor na primeira audiência do seu processo. O militar que aparentemente comandava as sessões de tortura às quais ela era submetida faz a advertência: “Veja bem o que você vai dizer, não esqueça que depois você volta pra cá; você volta pra mim”. Com a esperança de que a transfiram para uma prisão feminina, ela faz o relato de tudo o que passou na mão dos militares. O juiz determina que ela seja transferida, mas não é bem isso o que acontece.

Mas é justamente o conto sobre um personagem afetado indiretamente pela ditadura o mais interessante do livro. Em “A lista”, o exímio ferramenteiro Jacó passa por sucessivas demissões-relâmpago injustificadas. Ele sempre é demitido poucos dias depois de ser admitido por uma empresa. Tudo porque, em uma assembleia do sindicato, Jacó levantou a voz para fazer um comentário que sequer tinha cunho político. Uma mostra de que até mesmo pessoas que não se posicionaram firme e publicamente contra a ditadura foram prejudicadas por ela.

Infelizmente, o sofrimento imposto a milhares de pessoas pelo regime militar é um assunto que Bernardo Kucinski conhece muito bem. Ele próprio foi preso e exilado durante os anos de chumbo. E sua irmã, a professora Ana Rosa Kucinski, desapareceu em 1974. A confirmação do seu trágico destino veio à luz somente em 2012, nas páginas do livro “Memórias de uma guerra suja” (Topbooks), um depoimento do ex-delegado e torturador Cláudio Guerra aos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros: ela e o marido, Wilson Silva, ambos integrantes da Aliança Libertadora Nacional, foram mortos e tiveram seus corpos incinerados.

Foi para, quem sabe, diminuir o incômodo causado por essas e outras dores que Bernardo Kucinski decidiu se voltar para a ficção – “K.” também tem a ditadura como pano de fundo. Se foi essa a intenção, fica a esperança de ele ter conseguido algum êxito. Porque, se ler suas histórias causa certo desconforto, melhor nem imaginar como é senti-las na pele.

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