Se eu fechar os olhos agora, de Edney Silvestre

* * * Em 2009, pouco depois do lançamento de “Se eu fechar os olhos agora”, fiz uma resenha do livro e uma entrevista com o autor. O material, com alguns cortes, por questões de espaço, foi publicado na infelizmente extinta Revista Brasileiros. Como o conteúdo não está mais disponível na internet, decidi aproveitar o lançamento da minissérie inspirada no livro para (re)publicá-lo aqui, desta vez na íntegra. Enjoy 😉 * * *

O início de “Se eu fechar os olhos agora”, romance do jornalista e escritor Edney Silvestre, dá ao leitor, primeiro, a impressão de estar diante de um livro infanto-juvenil, por apresentar os dois protagonistas, Eduardo e Paulo, garotos de 12 anos de idade, no momento em que fazem mais uma de suas travessuras, matando aula para nadar em um lago; depois, o livro dá uma guinada e o leitor se vê enredado em uma trama policial: os garotos encontram, nas imediações do lago, uma mulher morta a facadas. Mas, na verdade, e apesar de haver em “Se eu fechar os olhos agora” uma espécie de aura juvenil e de uma investigação ocupar grande parte do livro, o que se tem diante dos olhos é um romance de formação.

Ambientado na década de 1960, em Valença, pequena cidade fluminense – terra natal do autor –, “Se eu fechar os olhos agora” é o primeiro livro de ficção de Edney Silvestre, que tem várias outras obras publicadas – de crônicas e coletâneas de entrevistas. Um dos personagens, já adulto, é a voz que dá início ao livro: “Se eu fechar os olhos agora, ainda posso sentir o sangue dela grudado nos meus dedos. E era assim: grudava nos meus dedos como tinha grudado nos louros cabelos dela, na testa alta, nas sobrancelhas arqueadas e nos cílios negros, nas pálpebras, na face, no pescoço, nos braços, na blusa branca rasgada e nos botões que não tinham sido arrancados, no sutiã cortado ao meio, no seio direito, na ponta do bico do seio direito”.

Esse trecho, que é o primeiro parágrafo do romance, revela uma das características da prosa de Edney: a descrição. E não se trata apenas de descrever um ambiente, uma cena, mas principalmente os sentimentos dos personagens, o que eles pensam em momentos cruciais do livro. Detalhes muito importantes para entender melhor cada um dos protagonistas da história, que se atém, principalmente, ao misterioso assassinato, mas que, paralelamente, acompanha os garotos no processo de perda da inocência e iniciação no mundo adulto – naquela época se envelhecia mais cedo…

Depois de encontrarem a morta, avisarem a polícia, serem considerados suspeitos e, finalmente, liberados, os garotos se recusam a crer na “versão oficial dos fatos”: de que ela foi morta pelo marido supostamente traído. Eles passam a conversar sobre o crime, tentar entender o fato, levantar outras teorias para explicá-lo. Em seguida, vão até a residência do casal, para quem sabe encontrar uma pista que os leve a esclarecer a situação e, talvez, descobrir a verdadeira razão pela qual a mulher foi morta – além de, claro, descobrir quem é o verdadeiro assassino. É quando descobrem que não são os únicos a desconfiar da versão de crime passional: na mesma noite em que eles invadem a propriedade, uma outra pessoa faz o mesmo. Quem é esse outro “detetive” os garotos descobrem fácil, seguindo-o rumo ao seu lar, um asilo para idosos.

Este senhor, a quem conhecemos melhor no decorrer do romance, serve como espécie de consciência dos meninos. Inexperientes em tudo, não conseguiriam jamais entender aquele crime sozinhos. Com a ajuda do velho Ubiratan, o que antes parecia ser uma brincadeira de criança, sem perspectiva alguma de chegar a um desfecho, a uma conclusão, se torna uma empreitada séria e perigosa, repleta de reviravoltas e que em certos momentos causa vertigem no leitor.

Apesar de estreante na ficção, Edney Silvestre tem como trunfo uma carreira sólida no jornalismo e uma bagagem literária invejável, coisas que certamente o ajudaram no desenvolver do romance, principalmente no que se refere à linguagem, à forma. A história, apesar de emaranhada, não se torna em momento algum confusa. A leitura é ágil e provoca uma enorme ansiedade de saber o que vai acontecer na próxima página. É admirável, também, a ambição do autor. Não parece que Silvestre escreveu o livro apenas para ser publicado e ser premiado com a pecha de escritor. A impressão é de que ele tentou escrever um romance diferenciado, marcante, relevante. E conseguiu não apenas isso, mas também produzir uma obra de inegável qualidade, beleza e força.

Como, quando, e, se você lembrar, onde veio a ideia para escrever “Se eu fechar os olhos agora”? Como foi o processo de escritura? Você teve muitas dificuldades no percurso ou tudo aconteceu de forma tranquila?

Foto: Globo/Raquel Cunha

Eu devia ter uns 9, 10 anos quando ouvi pela primeira vez a história, através de uma “conversa de adultos”, na qual eles comentavam um crime que ligava mãe, filha e o amante das duas. Não me recordo quando a trama me voltou à memória, mas sei que existia por mais de uma década, sem que eu soubesse como narrá-la (fiz várias tentativas frustradas), até que, num quarto de hotel, ouvi a voz de Paulo a me contar o que se recordava. “Se eu fechar os olhos agora”, dizia, “ainda posso sentir o sangue dela grudado nos meus dedos. E era assim, grudava nos meus dedos como grudava nos cabelos louros dela…” – e continuou. Daí em diante o romance foi-se estruturando, até chegar ao que é hoje. Seis anos depois.

Você é um jornalista experiente, tem outros livros publicados, mas este é seu primeiro romance, então

certamente é um momento muito especial para você, não é? Mas, como bom leitor que é e entrevistador de escritores, você sabe que nem tudo são flores, no terreno dos ficcionistas. Você está preparado para as possíveis críticas – mas não prováveis, devido a qualidade do livro – a “Se eu fechar os olhos agora”?

Por enquanto as críticas têm sido muito positivas, como a do Manoel da Costa Pinto na Folha de São Paulo, no sábado, 7 de novembro. Ele percebeu e sublinhou as várias camadas do texto, além do “gancho” da investigação de um crime. Há um natural descrédito inicial, afinal, sou conhecido como jornalista há tanto tempo, sem incursão (conhecida) na ficção, e muitos se aproximam do livro com desconfiança. Só a leitura do romance pode mudar isso.

A personagem que é assassinada, e que “faz o livro acontecer”, de onde ela veio? Você se inspirou em algum fato ou em alguma obra de arte? Ou ela “surgiu do nada”? E os dois garotos, protagonistas do romance? Por que não dois adultos?

Anita, a personagem principal, já surgiu morta na minha imaginação. Desde o lançamento do livro já soube de alguns leitores e jornalistas que veem semelhanças com fatos reais, acontecidos no interior do estado do Rio de Janeiro, assim como mulheres assassinadas em outras obras de ficção. Quem narra a história é um dos meninos, quarenta anos depois. Por que meninos? Porque era preciso mostrar aquele olhar inocente e esperançoso que temos diante do mundo. A passagem deles ao mundo adulto, cheio de dores e decepções, é como a que muitos de nós fizemos, e outros milhões de jovens estão fazendo e farão. Só através da dor do conhecimento se chega à idade adulta.

Você poderia dizer quais autores te influenciaram – ou quais são seus prediletos?

Thomas Mann e Graciliano Ramos, com certeza, assim como Scott Fitzgerald, que leio até hoje. Mas também li, com prazer, histórias em quadrinhos, do Tio Patinhas ao Tarzan, além de Allen Ginsberg, Jonathan Swift, Fernando Sabino, Carlos Heitor Cony e, sobretudo, Drummond e Cecília Meireles.

Há, em “Se eu fechar os olhos agora”, uma trama que nos remete ao gênero policial, mas de certa forma ele é um romance de formação. Como você conseguiu mesclar gêneros tão díspares?

Minha intenção era criar “memórias inventadas”, usando minhas próprias experiências na travessia do mundo infantil para o adulto. Queria, igualmente, mostrar um Brasil raramente referido na ficção recente, o Brasil de nossa formação histórica, do fim da escravidão e proclamação da República ao início da industrialização e seus efeitos sobre as vidas de gente comum. Anita, a mulher assassinada, não pode ser entendida sem se compreender o que se passou – e se passa – em nosso país.

Falar da política e da sociedade de outra época é uma saída para fazer críticas indiretas aos tempos atuais?

Para podermos entender o atual momento político e social brasileiro, para compreendermos os atos corruptos de muitos políticos, as falcatruas, a violência que vitima mulheres e crianças, para penetrarmos no que é o absurdo sentido de privilégio de nossas elites precisamos entender como nossa sociedade se formou. O romance é um dos caminhos para isso.

Sobre a literatura brasileira contemporânea, você acha que estamos vivendo o momento mais especial desde o início dos anos 2000? Estamos, finalmente, colhendo o que foi plantado anos atrás? E, para finalizar, podemos contar com mais uma ficção de Edney Silvestre daqui a algum tempo? Há algum material já pronto ou em produção?

Temos, no mínimo, uma dezena de autores excepcionais em língua portuguesa, neste momento. O número de livrarias cresce. Há cada vez mais livros de ficção e não-ficção de escritores nacionais publicados anualmente. Os adolescentes leem mais do que jamais leram. Aqui e no restante do mundo. Estamos no bom caminho. Sobre um possível novo livro, já estou a escrever o que, talvez, seja meu próximo romance. Um dos personagens é o mesmo de “Se eu fechar os olhos agora”. Vou fazendo anotações enquanto espero em aeroportos, em quartos de hotel, em voos como o recente, de Brasília para Curitiba. Só espero que não me tome 6 anos, como foi o caso deste primeiro romance.

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